E hoje, na nossa rubrica semanal – Impacto do Serviço de Assistência Pessoal, partilhamos convosco o testemunho do José Henrique, o nosso 1.º candidato e o 1.º destinatário a usufruir do serviço de assistência pessoal do CAVI Horizontes. No seu testemunho, o José desafia o/a leitor/a a fazer um exercício, exercício este que origina inevitavelmente uma reflexão profunda e crítica sobre diversas questões, nomeadamente sobre (inter)dependência, autonomia, autodeterminação e poder de decisão. Obrigada, José por este testemunho tão real e impactante, que passamos a transcrever textualmente:

“Cidadão em Part Time

Quando me pediram para escrever alguma coisinha sobre o impacto que o serviço de Assistência Pessoal tem tido na minha vida, diria que tenho tido sentimentos contraditórios. Se por um lado este serviço, num período curto do dia, tem me trazido mais autonomia e independência, por outro lado, a minha autonomia e determinação resume-se a 10h30m diárias. Nesta medida, considero que este Modelo de Apoio à Vida Independente, (MAVI) não responde na plenitude às minhas necessidades. Todavia, não podemos negar que o serviço de Assistência Pessoal é o primeiro passo para uma mudança paradigmática da deficiência e da inclusão. Contudo, considero que este modelo de Assistência Pessoal não respeita os princípios da filosofia de Vida Independente, uma vez que, a minha autonomia e a minha determinação estão limitadas a 10h30m diárias de Assistência Pessoal. Esta “benesse” que o CAVI (Centro de Apoio à Vida Independente) e o MAVI me proporcionam corresponde somente 44% do meu dia. Sendo eu um homem com grande dependência de terceiros, a minha reflexão sobre a temática da Deficiência fez-me ver que a minha condição não é por si mesma uma limitação e que existem barreiras atitudinais, sociais e políticas bem mais intransponíveis. Para comprová-lo proponho-vos um exercício! Imaginem que estão sozinhos(as) a dormir numa ilha deserta só com um telemóvel. Olhavam a redor e reparavam que a ilha não tinha nenhuma vegetação, estava completamente seca sem um único alimento. Subitamente, por volta das 4:30 da manhã, dá-vos uma fome daquelas. Tinham duas hipóteses, ir a nado até à ilha mais próxima a milhares de milhas, ou então podiam ligar a um amigo e pedir-lhe que vos levassem até lá para ver se conseguiam arranjar uma fruta para saciar a fome. Decidiam ligar ao amigo e pediam-lhe uma boleia até à outra ilha. Mas como era noite, o vosso amigo só poderia voar quando o sol nascesse. Na manhã seguinte e depois duma noite sem dormir, esganados de fome, finalmente lá chegaram à ilha e o vosso amigo deixa-vos lá e regressaria a casa. Após algumas horas nessa ilha encontravam muitas maçãs no cimo de uma árvore. No entanto, como já estavam à várias horas sem comer e sem forças para subir à árvore tiveram que ligar para outro amigo para ele trepar à árvore e buscar a fruta.

Desculpem, só um pequeno parêntesis! Nota-se, até agora, que em nenhum momento desta pequena história vos pedi que imaginassem que tinham uma deficiência.

Voltaremos então novamente à nossa história!

O vosso segundo amigo lá conseguiu trepar à árvore e deu-vos uma das maçãs. Como já estava atrasado para o trabalho, ele teve que ir embora rapidamente e deixou-vos lá. Sim, é isso mesmo que estão a pensar…! Ficaram novamente sozinhos(as) noutra ilha desconhecida. A noite caía , vocês fartos(as) de caminhar, famintos(as) , procuravam desesperadamente por outro alimento. De repente, ouvem vozes que vinha dentro de uma gruta e resolveram entrar para pedir auxílio. Dão de caras com três pessoas; um coxo, um cego e uma surda. Vocês foram muito bem recebidos, durante algumas horas. Vocês “comeram, beberam à grande e à francesa”! Dado ao adiantado da hora e como já estavam de pança cheia e perdidos de bêbados, tiveram que ir embora. Os três anfitriões não quiseram ceder uma das suas três camas. E foi desta forma e depois dum grande serão que vocês eram “convidados a sair” da gruta.

Já passava das 3h30m da manhã, caminharam sem rumo até se aperceberem que estavam novamente perdidos. Vocês sabiam que não podiam ir de volta para a outra ilha, porque mesmo se ligassem àquela hora ao vosso amigo, era noite e ele não tinha condições para voar. Só vos restava uma coisa… esperar pelo o amanhecer ao relento. O dia clareava lentamente, vocês espirravam e tossiam compulsivamente. O dia demorava a nascer e o frio intensificava-se, vocês só tinham a roupa do corpo. As horas passavam e o sol aparecia devagarinho, de imediato vocês pegavam no telemóvel para pedir ao vosso amigo para vos ir buscar, mas ele não podia naquele dia e só poderia no dia seguinte. Lá tiveram que esperar sozinhos(as) mais  24h ao frio. Antes de saírem da gruta, a surda tinha vos dado um pacote de biscoitos para enganar a fome durante a noite. E depois de 24h finalmente já se encontravam na primeira ilha!

Volto a relembrar que em nenhum momento disse-vos que tinham deficiência, no entanto a dependência aos outros foi evidente, se não fosse assim, não conseguiriam sobreviver!

Como puderam verificar nesta história fictícia, somos interdependentes uns dos outros, todos(as) temos vulnerabilidades e surgem fundamentalmente das barreiras atitudinais, sociais e políticas de uma sociedade que limita as nossas ações e os nossos comportamentos.

Ao cabo de três anos e meio como destinatário de Assistência Pessoal, na maioria das noites sinto que estou na ilha deserta com um frigorífico cheio de comidinha à hora que quiser. Contudo, tal como vocês, quando estavam à espera que o vosso amigo vos chegasse uma maçã, também eu tenho que esperar durante toda a noite até que venha uma das Assistentes Pessoais para que possa matar a minha fominha! Em outras noites, quando estou em festas de convívio, a minha bebedeira tem de ficar a meio, porque não me é permitido ficar para além das 22h30m, -hora do término do meu serviço de Assistência Pessoal. Se quiser prolongar a festa e a bebedeira, só me resta esperar até ao dia seguinte que uma Assistente Pessoal me vá buscar.

Apesar de todas estas limitações que o Modelo de Assistência Pessoal me impõe e por mais estranho que vos possa parecer, sinto-me um privilegiado porque sou um dos destinatários de Assistência Pessoal do país com mais horas de apoio.

Infelizmente, este serviço de Assistência Pessoal ainda não é um direito para as pessoas com deficiência em Portugal, no entanto, antes de o ser, será necessário mudanças profundas neste modelo de forma que garanta aos/às destinatários/as de Assistência Pessoal os três direitos essenciais deste serviço; Direito à Autonomia, Direitos à Autodeterminação e o Direito de Poder de Decisão.”

José Henrique Rocha

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